quinta-feira, 27 de março de 2008

Hoje queria conseguir escrever a uma criança. A uma criança de olhar triste.

Este menino de 12 anos a quem gostaria de escrever vive mesmo em frente à minha casa. Já não o via há alguns (muitos) anos.
Em volta da casa, de jardins longos, construiram muros altos que cercam o seu interior. Não brinca na rua, como os outros meninos da sua idade. A rua até é calma e não circulam muitos carros, mas anda num colégio, estuda piano e só chega a casa já pela noitinha. A mãe pára o carro, abre o portão com o comando e do lado de cá fica apenas o betão em redor da casa. Às vezes reparo que o pai o vem buscar aos fins-de-semana.
A última vez que me lembro de o ver foi até nas Piscinas Municipais. Estava lá com os amiguinhos do infantário. Deveria ter 5 para 6 anos. Lembro-me de chegar a casa e dizer à minha mãe que o tinha visto e que tinha ficado sensibilizada com o seu olhar. Vi um olhar tão intenso. Tão imenso. Triste! A minha mãe diz-me que os seus pais se estavam a divorciar.
Hoje inusitadamente, a propósito de um acidente aqui na rua, encontro a mãe e o menino que se trazem pela mão. Penso que a mãe deve estar de folga do Hospital e o menino de férias escolares. A mãe vem falar comigo.
Cumprimento-a quando passamos de carro uma pela outra aqui na rua. Lembro-me de ser miúda e ela já andar na Faculdade. De ouvir dizer como era aplicada. Que estudava horas a fio e iria ser médica. Mas nunca tinha falado com ela. Pelo menos que me lembre. E eu iria lembrar-me se tivesse falado.
Ela vem falar comigo. Sabe coisas sobre mim. Sei que às vezes encontra a minha mãe na rua e falam. O menino corre para lá do portão. Tem um amiguinho para brincar. Não é de cá da rua.
Não sei como, mas a conversa com a mãe começa a desenrolar-se com enorme fluidez e empatia. Penso que a mãe precisa desperadamente de falar. Começa a falar dos filhos. Existe um outro menino que só conheci quando era bebé. Diz-me que este "é diferente". Diz-me que por vezes nem sabe como lidar com a sua "sensibilidade", com a sua "maturidade". Fala do divórcio. Como toda essa experiência o afectou e ainda afecta. Mas diz que "sempre teve um olhar triste", mesmo "antes até". A criança volta ao encontro da mãe e traz o seu olhar triste. Sorrindo, pulando, o seu olhar triste volta de encontro ao amigo. A mãe vai relatando episódios que me vão enregelando por dentro. Que quando o seu menino tinha 10 anos se abeirou de si e lhe disse: "não sei porque é que as pessoas nos magoam, nos humilham. Não percebem que nos fazem sentir tristes?" Ainda por cima está uma tarde fria!
Volto a casa e penso que a tristeza existe nos olhos deste menino. Que não deixará nunca de existir. Que tristeza não tem que ser sinónimo de infelicidade. Que a tristeza não tem que ser uma condição, mas que às vezes é uma coisa muito fundamental. Que acontece a todos nós estarmos tristes porque a vida nos aflige, porque perdemos a rota de nós, porque às vezes é até mais cómodo, mas há alguns de nós que são tristes.
E hoje queria conseguir escrever, dizer não sei o quê...

2 comentários:

Su Duarte disse...

como sempre, cada espaço entre as tuas palavras,em cada um dos espaços, entrevejo ternura,parabéns.
cada vez gosto mais de vos ler e de vos ter.
beijos mil!!!!

Queen Frog disse...

maria

:)e acaba mm por ser mágico conhecer uma pessoa nas suas palavras. e esta carta q queria ser carta é feita de espaços...de muitos silêncios!
parabéns a ti pela tua sensibilidade.
Gosto que me leias.