sábado, 2 de fevereiro de 2008

Querida Avó,

Apareceste-me esta noite no regaço de um sonho, com o avental à volta da cintura, gordinha e a cheirar a canela e limão, como vinhas sempre abraçar-me.
Na última noite antes do acidente da tua partida, dormiste comigo. Lembras-te?

Na minha cama; nos lençóis coloridos dos meus doze anos.
Esqueceste a tua escova de dentes na minha mesa de cabeceira. E não vieste mais buscá-la. Escondi-a no fundo da gaveta durante algum tempo. E os lençóis...Disse à minha mãe que já não tinha idade para dormir em lençóis com ovelhinhas e nuvens. Eram os que mais gostava!
Nunca tinhas dormido comigo antes. Vieste nesse dia ajudar a tua filha a cozinhar e ficaste, porque já era tarde.
Nos dias que se seguiram, nos muitos dias dos anos que se seguiram, li esta coincidência como uma espécie de mau presságio. Será que tinhas partido, porque tinhas dormido comigo?
Tu, que nunca tinhas dormido comigo antes!
Cresci com o itinerário da tua partida marcado em mim, na rota da minha cama e dos meus medos.
Tu sabes, avó, que a morte havia já por outras vezes habitado a minha almofada de criança.Não foste a primeira a partir.O tio e a prima...Tu estavas lá para me abraçar.

E não podia falar com a minha mãe. Lembro o prado inundado de lágrimas que eram os seus olhos. Não queria que eu estivesse ao seu lado, para não ter que esconder os soluços. Passado algum tempo, talvez pudesse ter falado, mas fazia tudo para não acordar nela a dor da tua ausência sempre tão presente.

"Como és parecida com a tua avó, filha".
E de repente um sorriso nas minhas bochechas. Ouço esta frase repetidamente.
Ainda mais nos dias em que como fruta e mais fruta e tanta fruta.
Se estivesses aqui, avó, poderíamos de vez em quando escapulir-nos para debaixo de um qualquer pomar.Era um lugar só nosso. Eu sentava-me no teu aconchego e fazíamos uma salada de fruta e poemas, de poemas e fruta.
Recordo tantas vezes as palavras que tinhas sempre para me dizer à volta do teu fogão.
Tenho a certeza que se gosto tanto de poesia é por ti, avó.

Fiquei tão feliz que tivesses aparecido. Queria tanto dizer-te que hoje sei que me escolheste. Que foi a mim que quiseste dar o teu último colo. Não, não foi coincidência teres dormido comigo. Já não tenho mais medo, avó. Agora é com ternura que recordo a tua última noite nos meus lençóis coloridos. E se pudesse, vestiria novamente a minha cama com eles.
Hoje vou colocar um avental dos teus para te abraçar à volta do fogão.E da próxima vez que apareceres, vou ter uma taça de cerejas à tua espera.Ou então,vamos de mão juntas passear pelos pomares.
Gosto tanto de ti avó.
A tua neta.

4 comentários:

Su Duarte disse...

Linda, linda, linda...
Eu também sou filha dos meus avós,sabes Silvia?
É dos amores mais frutiferos e dos mais ingratos por os termos por tão curto tempo.
Dos amores maiores e com a presença mais curta...Acabamos por os perder cedo demais.
Mas é unico sem duvida.
Um beijo aos meus velhinhos lindos em Paço d ´Arcos...
E um para ti,linda carta.

Queen Frog disse...

Tão bonito..."Eu também sou filha dos meus avós (...)"
Brigada, Maria;)**

Anónimo disse...

E eu queria uma avó assim, a cheirar a canela e limão...
As vezes penso que não fui "filha" de ninguém :-)
Belíssimo texto !
Belíssimo ! :-)

Queen Frog disse...

Helena,

qd é assim, resta-nos "engravidar" do sonho que temos em ser de alguém:)

Brigada